MINHA MÃE NÃO PÔDE COMPRAR

 MINHA MÃE QUIS COMPRAR, MAS NÃO PÔDE...

*Carlindo de Lira Pereira

Foto: infovarejo

    Era janeiro do ano de 1973, fazia três anos que meu pai Carlindo Olindino Pereira e minha mãe Ivete de Lira Pereira emigraram, com seis filhos, da cidade do Recife, estado de Pernambuco para a cidade promissora de Arapiraca, no interior do estado das Alagoas; após os festejos do ano novo, minha mãe pedira a meu pai para visitar sua família, de descendência italiana, família Lippo Lira, que se estabelecera em Recife no bairro de Dois Irmãos, pois estava com saudade da terra natal, uma grande metrópole se comparada ao ritmo da pequena e promissora terra do fumo. Meu pai entendeu aquele sentimento de saudade do seio familiar e pediu que minha mãe escolhesse um dos filhos para acompanhá-la na viagem de visita à cidade do Recife. Cochichos para cá, cochichos para lá, e por fim o anúncio: “Carlindo é você que vai acompanhar sua mãe em viagem à Recife, vamos comprar roupas e sapatos novos para viajar”, disse meu pai, cujo nome herdei. Não sei por que fui o escolhido a retornar a terra natal, pois nasci no bairro de São José em Recife no dia 14 de janeiro de 1964, ano do golpe militar no Brasil, queda do governo Jango, tomada do poder à força! Tomei conhecimento bem mais tarde da conturbada história brasileira. Chegado o dia da viagem, lá estava eu ansioso demais, pois era a primeira vez que ia empreender uma jornada tão longa em um veículo. Carro para mim não era novidade, meu pai era mecânico e consertava radiadores de todos os carros, caminhoneta, jeep, caminhão, FNM, etc, cresci na oficina em meio às peças dos carros.

    Aliás, mais tarde, conserto de radiadores foi minha primeira atividade trabalhadora e financeira. Empreendemos a viagem , que durou aproximadamente um dia e meio de caminhão, pois na época a cidade de Arapiraca não dispunha de serviço de transporte inter-estadual. Chegamos à Recife numa ensolarada manhã de janeiro, fomos direto para o bairro Dois Irmãos, lá chegando minha mãe apontou para uma rua elevada, mais alta que a via principal, e apontando disse: “é aquela a casa de sua avó”, pisei o chão de Recife firmemente, fitei o lugar para onde minha mãe apontou e nesse momento implodiu de dentro de mim um sentimento de pertencer àquele lugar, uma felicidade sem conta, invadiu meu sentimento de existir, e vi-me, pela primeira vez, banhado pelo sol matinal de Recife, que minha mãe lembrava tanto quando estava em Arapiraca.

    Eu peguei na mão de minha mãe, com a outra segurava uma pequena mala, dirigimo-nos para a casa de minha avó. Ao chegar em frente a porta, mamãe bateu palmas, e lá de dentro veio uma figura magra que se aproximava e de repente: “Você aqui Ivete!” E apressadamente, pôs-se a abrir a fechadura da porta, depois um longo abraço entre a tia moça, era assim que a chamavam, e minha mãe. Ela era bem magrinha e muito, muito simpática e sorridente, porém, eu que era a novidade ali naquela casa, naquele momento, e então, as falas passaram a ser a meu respeito, “que garotinho lindo”, disse ao mesmo tempo em que abraçava-me e beijava-me, tia moça. Depois, descobri que a tratavam por esse apelido por ela ser uma moça solteira, uma solteirona, que nunca quis casar. Em seguida, saiu de um quarto da casa uma senhora de baixa estatura, gordinha, cabelos grisalhos, esbranquiçados pelo tempo, de tez branca, ‘uma típica mama italiana’, esboçando um sorriso quase gargalhando, gritou: “minha filha, veio me visitar, venha cá”, e minha avó, Dona Amara Lippo Lira, abraçou longamente minha mãe. Depois, voltou-se para mim e perguntou: “e esse aí é o Carlindinho¿” E me afagou a cabeça, me abraçou, beijou e disse: “é..., parece... parece com o pai”; nesse momento senti um forte sentimento de saudável orgulho, todo garoto sente-se assim ao ser comparado ao seu pai, porque pai é modelo, pai é quase Deus! Sai logo em seguida, de outro quarto, outra senhora aos berros: “Ivete, Ivete é você!”, era a tia Beta, cabelos ruivos, baixa estatura, gordinha, como minha avó, voz com sotaque carregado de pernambuquês, chamou-me a atenção. Após abraços e afagos em mamãe, voltou para mim: “é o Carlindinho!” abraçou-me apertadamente, confirmou o comentário da minha avó e me fez sentir que minha família era bem maior do que eu pensava em Arapiraca.

    Gostei, sem medida, da recepção, nesse primeiro contato. Seguiu-se, a esse primeiro momento, um falatório e gestos, misturando e entrecortando as falas das quatro mulheres, que lembravam sempre o passado. Risos, afagos, informes das novidades familiares: quem estava namorando, quem tinha noivado e casado; quem comprou isso, quem vendeu aquilo, etc. Lembraram vizinhos que partiram desse mundo e outras tantas coisas; eu, sempre fui tímido, acompanhava tudo com meus olhos, não havia espaço para mim ali, por isso, encaminhei-me para a porta de entrada e vislumbrei a paisagem que ficava em frente da casa de minha avó, com muito gramado verdinho cobrindo a ribanceira que formava a parte elevada da rua, tudo bem cuidado e limpo, admirei aquilo, era novidade para mim.

    No final da tarde, conheci um novo membro da família materna, o meu primo Evandro, estatura média, nem magro, nem gordo, negro, cabelo pixaim, esse detalhe chamou-me a atenção, os outros membros da família eram de etnia caucasiana européia, por enquanto, somente esse primo destoava etnicamente, depois informaram-me que o primeiro marido da tia Beta era de etnia afrobrasileira, mas muito desinibido e sorridente Evandro, estudante de medicina, abaixou-se e me abraçando perguntou afirmando: “é o Carlindinho, é!” Seguiu-se a noite, minha primeira nesse retorno a Recife, minhas tinhas lembraram que naquela noite um grupo de moradores do bairro reuniam-se para dançar ciranda, típica música e dança pernambucana, dançada e cantada em formação de um grande círculo, todos de mãos dadas cantando em uníssono alegremente, indo e voltando, num ritmo agradável, vozes que em coro faziam vibrar meu coração pueril.

    Acordei na minha primeira manhã, cuja noite dormira em casa de minha avó. Acordei cedo. Levantei e percebi que tia moça já estava na cozinha. Encaminhei-me saudei-a e fui ao banheiro para a higiene matinal. Uma a uma as mulheres da casa formam acordando, tomamos café e, em seguida, eu e minha mãe fomos a Olinda encontrar outros parentes, lá conheci, tia Zezé, tio Hilton, primos Fernando, Neno, Roberto, Robson, prima Anunciada, Marisa, e outros e outras, quanta gente! De todas as etnias, todas as cores, várias profissões exercidas por elas e eles. Antes eu vivia nun simples poço, em recife parecia um mar, um oceano de parentes e parentescos; percebi que estava ligado a muita gente. Sem dúvida, ampliei meus horizontes relacionais familiares. Me conheceram e os conheci entre risos e abraços superando a rotina do dia a dia e o cansaço das horas e anos. Eu era a surpresa das visitas, nenhum parente havia me visto até então.

    No terceiro dia em Recife, fui com minha mãe conhecer uma grande rede de supermercados que se instalara em Recife. Conhecia dos comerciais do rádio e da TV em preto e branco, era a rede Mesbla. Ao chegar ao local fiquei a admirar a construção do gigante supermercado, era uma loja enorme com alguns andares e em grande comprimento. Minha mãe disse ao entrar: “nos andares de cima há um departamento exclusivo de brinquedos”, fiquei entusiasmado para conhecer. E após minha mãe pegar alguns tecidos e peças de roupas para levar e dar às minhas irmãs e irmão, ela disse: “vamos subir para você conhecer”, pegou-me pela mão e me orientando como proceder subimos numa escada rolante até o andar superior. Ao chegar pude ver várias sessões com brinquedos de uma diversidade deslumbrante, com sessões para meninas e meninos de todos os tamanhos e tipos. Ao ir a uma sessão masculina deparamo-nos com um casal estrangeiro de feições japonesa, na época não sabia distinguir, coreano de chinês ou japonês. Para mim, era japonês dos filmes e pronto! Mas o que chamou-me a atenção foi o grande e vistoso brinquedo que o japonesinho, filho do casal, segurava orgulhosamente em seus braços, sim, segurava com os dois. Me entusiasmei e pensei quero um maior! Ora, se um japonês, estrangeiro, aqui no Brasil, em Recife pode ostentar um belo e grande brinquedo, eu, por ser brasileiro e estar no meu estado natal, vou comprar um maior e mais bonito, era o que em sentimento de brasilidade e bairrismo pulsava em mim. E aí, dirigi-me a minha mãe e apontando um belo e grande brinquedo disse: “escolho esse”, ela apontando-o para mim disse: “este eu não posso pagar e muito caro”, eu não fazia a menor ideia dos limites socioeconômicos da sociedade capitalista, em minha ingenuidade de criança sentia, pensava que por ser brasileiro e estar em minha cidade natal, minha mãe podia comprar bem mais, muito mais que aquele casal estrangeiro. Refiz-me emocionalmente e corri para outro brinquedo um pouco menor, porém, ainda, grande e vistoso, ela respondeu-me: “este também, não!” Então, em minha avaliação de valor, feita por uma criança brasileira no seu país e terra natal, apontei outro, dessa vez, menor que o da criança japonesa, ao que minha mãe apressou-se em dizer: “você não entendeu, ainda, se eu pudesse pagar, compraria o que você quer, mas não posso”, e estendendo a mão segurou a minha e dirigiu-se para uma sessão de brinquedos pequenos e de baixo valor, pegou um carrinho e disse: “este é seu!” Naquele momento, ao longe pude, ainda, ver o casal de japonês e seu filho indo em direção ao caixa pagar suas compras. Nada disse a minha mãe, mas eu peguei o carrinho feito, visivelmente, com material de baixa qualidade, sem luzes piscando e nada, e ao fitar o filho do casal japonês segurando com os dois braços aquele brinquedo tecnologicamente superior ao meu, senti algo que nunca saiu de minha alma de criança brasileira: explodiu uma indignação, um sentimento de inferioridade, que me sufocava, senti-me um prisioneiro em meu próprio país, não acreditava no que estava acontecendo ali, como pode um país tratar assim as crianças nascidas aqui no Brasil! Me questionava aos dez anos, me revoltava nessa idade com aquela limitação financeira de minha mãe, senti que meu país, o Brasil, naquele instante, me humilhava dianta de uma família estrangeira em meu próprio país, era uma grande humilhação sair daquela loja levando um carrinho de baixo custo, enquanto no caixa ao lado a criança japonesa ostentava um enorme e sofisticado brinquedo, senti uma força me machucando por dentro, enquanto minha mãe pegava o dinheiro e pagava a conta, olhava-a incrédulo, senti no mais profundo da minha alma que nesse país, naquela cidade, havia algo profundamente equivocado, algo insuportavelmente destoante da bela letra do hino nacional, que todas as manhãs na minha escola de primeiro grau Hugo José Camelo Lima, em Arapiraca, orgulhosamente eu cantava altissonante e via subir no mastro a bandeira brasileira; naquela idade, aos dez anos, não tinha qualquer informação sobre classe social, pirâmide econômico-social, capitalismo selvagem, socialismo, comunismo, nada ouvia falar, nada me fora informado, portanto, nada sabia. Contudo, sem ter conhecimento acadêmico suficiente para saber que minha mãe era uma ex-proletária em uma fábrica de tear em Recife, antes de casar com meu pai, e que se conheceram ali na fábrica. Que o Brasil vivia um dos momentos políticos mais improdutivos e nefastos da sua história moderna, que no ano em que nasci em 1964, dia 31 de março forças militares fecharam as Câmaras municipais, as Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional, e a classe dominante da época patrocinada pelas elites capitalista estrangeiras tomaram o poder político a força, expulsaram o presidenteeleito e deram início a uma sangrenta ditadura militar.

    Naquela manhã de janeiro de 1973, em uma das lojas Mesbla, na cidade do Recife, em Pernambuco, Brasil, um brasileirinho sentiu-se expatriado mesmo estando em solo brasileiro, mesmo em sua cidade natal! Naquele dia, uma criança brasileira percebeu, naquele momento em que estava numa bela loja para comprar um grande brinquedo, que algo monstruoso o impedia de adquirir o brinquedo que ele deseja, e que tinha que se contentar com um de péssima qualidade; diante disso, que algo deveria ser feito por essa criança para que qualquer outra criança brasileira não aceite algo de baixa qualidade, porque tem que ser assim. Ali, percebi que precisava ler, estudar e compreender esse fato social, financeiro, econômico, que limitava o poder de compra de uma brasileira, que sequer percebeu a terrível e asfixiante angustia de seu filho, um brasileirinho, que, simplesmente, queria comprar, adquirir um brinquedo tecnologicamente mais avançado, melhorado.

    Saí da loja Mesbla marcado pela indignação, pela não aceitação da limitação financeira de minha mãe que só pôde comprar um brinquedo de baixa qualidade. Minha percepção em relação a situação social, ao contexto de moradia, trabalho, condições de vida mudou radicalmente, após esse momento, minha fascinação pela cidade natal, deu lugar a uma espécie de empatia pela situação de vida, que passei a observar nos pedintes nas ruas, dos sem teto dormindo embaixo das marquises das lojas, das péssimas condições de vida nas favelas, vilas, mocambos, sem água encanada, esgoto a céu aberto, milhões de pessoas sem energia elétrica, milhões de desempregados, outros absurdamente milhões de analfabetos, semianalfabetos, analfabetos funcionais, cruelmente milhões que viviam na pobreza ou pior abaixo da linha da pobreza, milhões de miseráveis. Esse foi o Brasil, que daquele momento em diante, foi mostrado a mim: um Brasil que, inaceitavelmente, excluía brasileiros! Um país rico em todos os sentidos: matriz energética, solo produtivo, bacias hidrográficas, usinas hidrelétricas, diversidade de flora e fauna, uma rica costa marítima, que era usufruído, apenas, por meia dúzia de brasileiros gananciosos e por estrangeiros interessados na exploração das riquezas naturais e de mão de obra desqualificada e barata, enquanto que para a maioria, a marginalidade social era o preço a pagar, isto é, milhões viviam a margem dos bens e garantias sociais em um país tão rico!

    No ano de 1973, a cidade do Recife fez-me enxergar o meu contexto histórico, me fez tomar distância para tomar consciência do meu senso crítico, afastando-me da ingenuidade alienante na qual, ainda milhões de brasileiras e brasileiros estão imersos, tal qual peixe na água, existe nela, mas não toma consciência de sua condição que o limita, facilitando as coisas para o pescador que sabe de suas limitações.

*Pró-Reitor de Extensão e Professor da Uneal; escritor, membro da ACALA, da União Sertaneja de Escritores.

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